domingo, setembro 28, 2014

The Beatles In America – Spencer Leigh





Para quem gosta de Beatles, o assunto nunca acaba. Numa das últimas postagens, comentei sobre o livro Can’t Buy Me Love de Jonathan Gould que trata da história da banda, dando enfoque na repercussão que a banda causou na Inglaterra e nos EUA. O livro The Beatles In America: The Stories, The Scene, 50 Years On de Spencer Leigh, editado pela Omnibus Press em 2013, vai no mesmo caminho. Porém, tendo apenas os Estados Unidos como alvo (o autor tem ainda dois livros sobre os passos dos Beatles em Liverpool, e outro em Hamburgo). 

Tendo um estilo de diário e livro de fotografia, o volume repassa a trajetória da banda em terras norte-americanas desde a histórica primeira visita em 1964 até o rompimento oficial em 1970, não deixando de incluir uma introdução sobre os primórdios da banda na Inglaterra, e um prólogo no qual cita momentos relevantes de John, Paul, George e Ringo EUA depois da separação, entre eles, o fatídico assassinato de John Lennon em Nova York.

A intenção de Spencer Leigh não foi fazer um estudo e análise mais aprofundada da carreira dos Beatles, como fez Jonathan Gould em Can’t Buy Me Love. Leigh, na verdade, coletou materiais que ilustram bem o texto com muitas fotos, recortes de jornais, e declarações de artistas, entre outros norte-americanos que de alguma forma cruzaram o caminho dos FabFour. Nesse caso, The Beatles In America, funciona como um ótimo complemento ao livro de Gould. Sem edição em português, o livro ricamente ilustrado, vale até mesmo para quem não lê no idioma dos rapazes de Liverpool, em razão do extenso arquivo fotográfico.

domingo, setembro 21, 2014

Bob Dylan - Oh Mercy (1989)






Assim como me ocorreu com o disco Blue de Joni Mitchell, quando conheci esse disco de Bob Dylan não tinha noção alguma da grande importância que o mesmo teve em sua carreira. Só vim a descobrir a relevância do álbum para o artista ao ler seu livro intitulado "Crônicas – Volume Um", no qual ele dedica um dos apenas cinco capítulos totalmente a esse álbum. Oh Mercy representou uma fase de recomeço para Dylan. No livro ele narra todo o processo de feitura desse trabalho, desde a composição até o último take da gravação. Boa parte do texto cita o produtor Danny Lanois, com quem Dylan teve uma intensa convivência e divergências criativas durante o processo de gravação do álbum.

“Political World” foi a primeira música composta dessa leva e coube a ela também a função de abrir o disco. Com sonoridade sombria e uma voz rascante de Dylan, os versos inicias já definem a música: “We live in a political world, Love don't have any place” (Vivemos em mundo político, amor não tem lugar). A letra foi escrita toda de uma vez e tinha pelo menos o dobro dos versos antes do compositor descartar parte deles. 

“Where Teardrops Fall” soa muito próxima do Dylan dos anos 70, especialmente pelo lap-steel tocado por Lanois e a o acordeom de Rockin’ Doopsie.

Segundo Dylan, o produtor Danny Lanois considerava “Everthing Is Broken” uma canção descartável. Dylan obviamente discordava dele. E o tempo provou que o compositor estava certo. 

“Ring Them Bells” é uma das faixas mais “enxutas" do disco, com acompanhamento apenas de piano, teclados e guitarra; e tem uma letra de tom épico e religioso: Ring them bells, for the time that flies/For the child that cries/When innocence dies (Toque os sinos para o tempo que voa/Para a criança que chora/Quando a inocência morre).

“Man In The Long Black Coat” e “Shooting Star” foram escritas praticamente ao mesmo tempo. Sobre a soturna “Man In The Long Black Coat”, Dylan escreveu que ela “tenta falar de alguém cujo próprio corpo não lhe pertence. Alguém que amou a vida, mas não pode viver, e cuja alma se amargura porque outros são capazes de viver”. Incerto de que conseguiu escrever músicas históricas para o disco como desejava o produtor Lanois, Dylan acredita que tenha chegado perto em pelo menos duas, e essa seria uma delas. Ele pensou nela como a sua “I Walk The Line”, música de Jonnhy Cash, que na visão de Dylan: "promove um ataque a nossos pontos mais vulneráveis, as palavras afiadas de um mestre".

“Most Of The Time” tem uma letra romântica como provavelmente apenas Dylan escreveria, na qual os primeiros versos sequer revelam que este é o tema da canção na qual ele apresenta um personagem forte e confiante que se curva diante uma paixão e, consegue compor versos diferentes para um assunto totalmente trivial: “Most of the time/I'm clear focused all around/Most of the time/I can keep both feet on the ground/I can follow the path, I can read the signs/Stay right with it, when the road unwinds/I can handle whatever I stumble upon/I don't even notice she's gone/Most of the time” (Na maioria das vezes/Eu sou tranquilo e focado com o que acontece ao meu redor/Na maioria das vezes/Eu posso manter os dois pés no chão/Eu posso seguir o caminho/Eu posso ler os sinais/Permanecer assim, quando a estrada se desenrola/Posso lidar com qualquer coisa que eu esbarre/Nem sequer noto que ela se foi/Na maioria das vezes).

 A levada arrastada de “What good Am I?” soa como um blues improvisado. A letra também foi composta toda de uma vez, como Dylan revelou. 

“Disease of Conceit” que ele assume ter um toque gospel, nasceu a partir da notícia da proibição de pregar ao pastor Jimmy Swaggart que também foi destituído da liderança da Assembleia de Deus devido à sua ligação com uma prostituta. Dylan que discordava da punição escreve no livro: “A Bíblia está cheia dessas coisas. Um monte daqueles antigos reis e líderes teve várias esposas e concubinas, e o profeta Oséias até foi casado com uma prostituta e isso não o impediu de ser um homem santo. Mas aqueles eram outros tempos, e para Swaggart foi o fim da linha”. Para Dylan que gravou o piano nessa faixa, disse que Arthur Rubinstein teria sido o instrumentista perfeito para tocá-la.

“What Was It You Wanted?” foi outra que ele diz ter composto rapidamente, letra e melodia ao mesmo tempo. Depois de uma pausa, o compositor voltava à ativa com o ímpeto dos primeiros trabalhos. Os timbres de guitarra com bastante efeito de tremolo e reverb que aparecem em várias faixas do disco reaparecem aqui e Dylan adiciona solos marcantes de harmônica.

Para a gravação de “Shooting Star”, Dylan confessa que gostaria de ter um ou dois clarinetes na gravação, mas fizeram com o que estava disponível na ocasião: Brian na guitarra, Willie, na bateria, Tony no baixo e Lanois no omnichord (um instrumento de plástico que soa como uma cítara) e, ele na guitarra e harmônica. A canção que segundo Dylan foi uma daqueles que surgiram completas, lhe dá a sensação de que ele mais “a recebeu” do que compôs. Nas palavras do compositor, era como se ele estivesse viajando pela trilha do jardim do sol e simplesmente a encontrasse ali. “Ela era iluminada. Eu tinha visto uma estrela cadente do quinta de nossa casa, ou talvez fosse um meteorito”. 

Como afirmou Dylan no livro "Crônicas": “... o disco não me colocou de volta ao mapa do mundo do rádio... ele obteve algumas resenhas boas, mas resenhas boas não vendem discos. Todo mundo que lança um disco consegue pelo menos uma resenha boa, só que há sempre uma nova sagra de discos e um novo conjunto de resenhas”. Ainda assim o disco se tornou um trabalho extremamente importante na obra de Dylan, a ponto de ser o único a intitular um dos capítulos do seu livro de memórias. Concluindo com palavras do próprio: “O negócio musical é estranho. Você o amaldiçoa, mas o ama”.

Bob Dylan – voz, violões, guitarra, piano, harmônica, órgão
Daniel Lanois  – dobro, lap steel, guitarra, omnichord
Rockin' Dopsie – acordeom em "Where Teardrops Fall"
Willie Green – bateria em "Political World", "Everything Is Broken", "Most of the Time", "Disease of Conceit", "What Was It You Wanted", "Shooting Star"
Tony Hall – baixo em "Political World", "Everything Is Broken", "Most of the Time", "Disease of Conceit", "Shooting Star"
Malcolm Burn – meia-lua, teclados, baixo em "Everything Is Broken", "Ring Them Bells", "Man in the Long Black Coat", "Most of the Time", "What Good Am I?", "What Was It You Wanted"
John Hart – saxofone em "Where Teardrops Fall"
Daryl Johnson – percussão em "Everything Is Broken"
Larry Jolivet – baixo em "Where Teardrops Fall"
Cyril Neville – percussão em "Political World", "Most of the Time", "What Was It You Wanted"
Alton Rubin, Jr. – “Tábua de lavar” em  "Where Teardrops Fall"
Mason Ruffner – guitar on "Political World", "Disease of Conceit", "What Was It You Wanted"
Brian Stoltz – guitarra em "Political World", "Everything Is Broken", "Disease of Conceit", "Shooting Star"
Paul Synegal – guitarra em "Where Teardrops Fall"


Obs: Todas as citações de Bob Dylan foram retiradas do livro "Crônicas - Volume Um", editora Planeta, 2005.


domingo, setembro 14, 2014

Jimi Hendrix Experience: Axis: Bold As Love (1967)




A primeira vez que eu ouvi Jimi Hendrix foi nos anos 1990, assistindo pela TV sua apresentação no Festival da Ilha de Wight em 1970. Ele viria a morrer 18 dias depois. Já antevendo que iria gostar (e gostei imensamente), coloquei o videocassete em ação e gravei o show que ainda permanece no meu arquivo. Tempos depois, tomei conhecimento de que aquela teria sido uma das suas piores apresentações, devido a problemas técnicos, e que entre uma canção e outra, o show era interrompido no intuito de sanar os problemas (essa parte obviamente não aparece no vídeo editado). A segunda experiência com sua música foi novamente audiovisual, assistindo a uma reapresentação também pela TV do seu show em Woodstock (outro registro que permanece guardado nos meus arquivos em VHS). Perdi a conta das vezes que assisti a essas fitas. A primeira vez que eu “só” ouvi o Jimi, foi através da coletânea “A Arte de Jimi Hendrix” lançado pela gravadora Philips. Consegui o vinil duplo emprestado de um amigo e copiei em fita K7 (desnecessário dizer que a fitinha ainda está devidamente guardada comigo?). Foi um susto (positivo), em razão de estar acostumado às performances enlouquecidas e altamente improvisadas do guitarrista, espantei-me ao perceber que ele realmente cantava (não apenas um trecho ou outro da letra como fazia ao vivo, parecendo não controlar sua energia musical e a vontade de tocar guitarra, como se a música brotasse contra a sua vontade em diversos momentos), também me surpreendeu a qualidade das gravações, os timbres, arranjos. Passei a gostar mais do Hendrix de estúdio do que o ao vivo, talvez contrariando a regra em que suas performances de palco eram altamente exaltadas. Certamente deve ter sido mágico para quem pôde vê-lo in loco

Axis: Bold As Love foi o segundo álbum de Hendrix. Lançado no dia primeiro de dezembro de 1967, exatamente seis meses após o não menos icônico Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band dos Beatles. Dois daqueles álbuns que devem ter sido ainda mais impactantes no universo pop para quem ouviu na época de lançamento, sem todas as informações musicais que vieram depois deles. O disco tem produção de Chas Chandler, baixista da banda The Animals, que foi uma espécie de “descobridor” do Hendrix, ao levar o músico norte-americano para a Inglaterra e tê-lo lançado lá, prestando um enorme serviço à música de todos os tempos. 

A faixa de abertura, “EXP”, é na verdade uma vinheta na qual um radialista fictício (narrado pelo baterista Mitch Mitchell) apresenta o também personagem Paul Caruso (narrado por Jimi) que convida os ouvintes para a experiência sonora que virá em seguida, já apresentando uma série de ruídos criados pela guitarra de Hendrix. “Up From The Skies” tem algo da influência jazzística de Hendrix, mas, sobretudo a bateria de Mitch Mitchell adiciona uma levada não muito comum ao pop de então. Hendrix cria uma base utilizando um pedal de wah-wah durante toda a música (não me recordo de uma gravação onde esse efeito fosse explorado durante toda a canção na base harmônica principal). “Spanish Castle Magic” apresenta um de seus riffs mais marcantes, e mais uma das bases não usuais de Hendrix que definiu muito do que viria a ser a sonoridade dos powers-trios junto com o baterista Mitch Mitchell e o baixista Noel Redding. “Wait Until Tomorrow”, outro dos clássicos do guitarrista tem uma guitarra com um swing funk que depois seria extremamente recorrente na música pop, mas que talvez também ainda não se tivesse ouvido antes de Hendrix. “Ain’t No Telling” com seu ritmo “quebrado” e passagens inesperadas, é mais uma das músicas de Hendrix que reforçam as palavras de Eric Clapton, quando disse que Hendrix fazia tudo diferente. Uma das suas mais belas melodias, senão a mais bela de todas é “Little Wing”, música que em pouco menos de dois minutos e meio de duração consegue condensar a melodia da canção a arranjos geniais de guitarra (a começar pela marcante introdução), unido a timbres singulares e um solo curto, mas de intensidade única. O glockenspiel tocado por Mitch Mitchell ajuda a realçar a identidade sonora original da canção. E não podemos esquecer que Jimi também sabia dar o recado nos vocais (lembrando daquela surpresa que comentei no início do texto ao descobrir que ele também cantava). “If 6 was 9” tem uma contundente e individualista letra escrita bem no meio de toda a questão hippie: “Now if 6 turned out to be 9/I don't mind, I don't mind/Alright, if all the hippies cut off all their hair/I don't care, I don't care/Dig, 'cos I got my own world to live through/And I ain't gonna copy you” (“Agora, se 6 acabasse por ser 9/Eu não me importaria, eu não me importaria/Certo, se todos os hippies cortassem todos os seus cabelos/Eu não me importaria, eu não me importaria/Sabe, porque eu tenho o meu próprio mundo para viver/E eu não vou copiar você”). Algo do tipo “seja você mesmo”, ou “seja seu próprio herói” como diria Lennon, que provavelmente deve ter agrado à mente do beatle. No solo e no final da canção, toda aquela sonoridade caótica de Hendrix que denunciava que o mundo não vivia tão em “paz e amor”.

“You Got Me Floatin’” inicia o lado B do disco com um riff rascante com distorção na medida certa, e a mesma loucura sonora que fecha o lado A. “Castle Made of Sand”, tem na introdução, mais uma das sacadas simples e geniais de Hendrix com acordes ascendentes e descentes passeando pela escala da guitarra e depois um turnaround ainda na onda de “Little Wing” com aquele timbre estalado característico das guitarras Fender Stratocaster. Junto aos versos, frases de guitarra invertida, inovação trazida pelos Beatles um ano antes no álbum Revolver (vide as músicas I’m Only Sleeping e Tomorrow Never Knows). Além do som, Hendrix revela-se um bom cronista na letra em que fala de forma cinematográfica de uma recorrente briga de casal: “Down the street you can hear her scream "you're a disgrace” /As she slams the door in his drunken face/And now he stands outside and all the neighbours start to gossip and drool” (“Descendo a rua, você pode escutar o grito dela: "você é um d*!"/Enquanto bate a porta na cara embriagada dele/e ele fica na rua/ enquanto os vizinhos começam a fofocar e conversar”). “Shes´s so fine” é a única música do disco não composta por Hendrix. O baixista Noel Redding assina a composição e assume o vocal principal da faixa que lembra muito o Cream em músicas como “Strange Brew”. “One Rainy Wish” é mais uma variante da sonoridade clássica de Hendrix com uma levada inicial meio arrastada que é atropelada no meio da canção por uma agressividade súbita e frases hipnóticas de guitarra. “Little Miss Lover” tem uma levada de bateria que depois seria muito presente nas músicas do Led Zeppelin, como “Heartbreaker” ou “The Song Remais The Same”, por exemplo. “Bold As Love” nomeia e fecha o álbum, outra grande melodia de Hendrix, quase nunca lembrado por esse seu lado compositor. Afora isso, a música foi gravada com a genialidade de sempre de Jimi. Apesar do lugar-comum e de todos os clichês que exaltam apenas o Hendrix guitarrista, é bom lembrar que mais do que o instrumentista genial, ele era um grande músico no conceito mais amplo do termo. As faixas desse álbum mostram isso, seja pelas suas composições, seja pela concepção dos arranjos, ou ainda o cuidado com timbres, e com todo o processo de gravação. Não esquecendo que suas letras também merecem respeito, especialmente pensando nos compositores de rock americano (em detrimento dos ingleses) que nunca foram dos melhores letristas, com algumas exceções óbvias, como Dylan.

domingo, setembro 07, 2014

Engenheiros do Hawaii - Uma Breve Viagem Discográfica: Os Anos Gessinger, Licks & Maltz

8. Capítulo VII - Final

Filmes de Guerra, Canções de Amor (1993)




Assim como fizeram em 1989, ao lançar o disco ao vivo Alívio Imediato, após três discos de estúdio, os Engenheiros do Hawaii colocaram na praça, Filmes de Guerra, Canções de Amor (título de uma música presente no segundo disco da banda A Revolta dos Dândis), segundo álbum ao vivo, depois de outra sequência de mais três trabalhos de estúdio. No entanto, ao invés de apenas fazerem um registro da turnê como fizeram no "ao vivo" anterior, eles optaram por um novo formato. O set básico do disco era composto por Humberto Gessinger e Augusto Licks tocando guitarras semi-acústicas e Carlos Maltz na percussão. Com eventuais momentos de Gessinger ao piano ou acordeom, e Licks na harmônica. Outra ideia tirada do Alívio Imediato foi a inclusão de novas canções (duas delas registradas em estúdio e duas gravadas ao vivo). A escolha do repertório não necessariamente privilegiou as canções de maior sucesso, e eles buscaram faixas de todos os álbuns da banda (exceto do disco Gessinger, Licks e Maltz, do qual a música “Parabólica” só aparece no vídeo lançado em VHS na época e relançado em DVD anos depois). O disco contaria com a produção de Mayrton Bahia, depois de vários anos com a banda se autoproduzindo. A capa com um fundo que reproduz uma madeira com uma boca em f (a abertura presente em instrumentos como o violino e a guitarras semi-acústicas) atentava para a sonoridade mais acústica do trabalho. 

Com participação da Orquestra Sinfônica Brasileira, arranjada e regida por Wagner Tiso, a nova música “Mapas do Acaso” abre o oitavo disco dos Engenheiros, sétimo e derradeiro da formação Gessinger, Licks e Maltz. Humberto e Licks empunham guitarras semi-acústicas com Maltz na percussão a qual se soma a sonoridade sutil da orquestra. Licks passeia suas frases de guitarra elegantemente pela música, como faria em todo o álbum, mostrando sua versatilidade musical. Raramente lembrado, esse talvez seja um de seus melhores solos em seus trabalhos com os Engenheiros. As novas letras de Humberto também estariam entre seus melhores momentos da discografia da banda. A música, assim como todas com orquestra, foi gravada sem a presença da plateia que já surge na segunda música, “Além dos Out-doors” também apresentada com a “nova” formação instrumental da banda, com Augustinho brilhante na execução de sua guitarra Gibson 175. Apesar do formato e sonoridade mais leves, a banda consegue manter a pulsação firme, levando as músicas em vários momentos para uma pegada mais jazz e blues. “Pra Entender” vem amarrada à “Além dos Out-Doors”, quase transformando as duas músicas em partes A e B de uma mesma canção. Licks sola a guitarra cantando as notas ao mesmo tempo, a mixagem esconde um pouco isso no disco (no áudio do vídeo é mais evidente). Outra novidade do disco é a música “¿Quanto Vale a Vida?”, uma das mais belas e singelas da banda. A harmônica de Licks materializa em notas o lirismo da letra escrita por Humberto (“Nas garras da águia, nas asas da pomba, em poucas palavras, no silêncio total, no olho do furacão, na ilha da fantasia, quanto vale a vida”?). No final da canção, trechos de “Piano Bar” e “Perfeita Simetria”. “Crônica” reapareceu no repertório da banda, se renovando de tal forma que seria mantida por muito tempo no setlist dos Engenheiros. Dispensável citar mais um grande solo de Licks. Humberto registra sua primeira gravação tocando acordeom na música “Pra Ser Sincero” que encerra o lado A do disco, deixando a marca da música gaúcha na sonoridade da banda, especialmente na segunda parte. 

“Muros & Grades” abre o lado B com novo arranjo, aonde a batida da guitarra tocada por Humberto traz a canção para o que se convencionou chamar de MPB. Licks toca a guitarra com e-bow (equipamento que empresta ao instrumento uma sustentação prolongada, soando próximo ao que o arco faz em um violino). Assim, como no disco Alívio Imediato, a banda permite a “participação” da plateia que tem assobios e gritos registrados no decorrer dessa e outras faixas. E a música seguinte, é exatamente a que deu nome ao primeiro disco ao vivo (gravada então numa versão de estúdio). A nova versão da música “Alívio Imediato” ganhou também nova letra, com mudanças feitas à original (“Holofotes iluminam a libido e o vírus, o álibi perdido, elo de ligação, não há nada de concreto entre nossos lábios, só um muro de batom e frases sem fim, é que tudo se divide, todos se separam, uma república no pampa, um ponto em circunstância, um muro nos divide, uma grade nos separa”). A pesada “Ando Só” gravada no disco Várias Variáveis, também recebeu o toque sutil do disco com Gessinger ao piano e mais uma vez a participação da Sinfônica Brasileira regida por Tiso, como também acontece com as duas partes de “O Exército de Um Homem Só” unidas, fechando a parte ao vivo do disco. Momentos finais e épicos do show gravado na Sala Cecília Meirelles, no Rio de Janeiro. Ao executarem essas músicas a banda certamente não imagina estar realizando ali o que seria o “canto do cisne” da formação, e sem dúvidas, a música seria um bom resumo dos momentos finais, “livres dessa história, a nossa trajetória não precisa explicação, e não tem explicação”. Na sequência eles apresentariam duas novas canções apontando os rumos que a banda poderia seguir, caso a formação não viesse a ser desmanchada poucos meses após o lançamento do disco com a saída de Augusto Licks, em maio de 1994. São elas: “Às Vezes Nunca” que começa ainda com a presença das guitarras semi-acústicas e a percussão somadas à clarineta do genial Paulo Moura e ao acordeom de Wagner Tiso. No final, a música ganha um trecho pesado com o retorno da guitarra, baixo e bateria. E fechando o disco, “Realidade Virtual” com piano, acordeom e baixo tocados por Humberto, guitarra e violão de Licks e bateria de Maltz, participação especial no coro dos Golden Boys (que já haviam gravado com os Engenheiros na música "O Papa é Pop") e das cantoras Jurema, Ana, Cecília e Nair. A letra rezava que era “preciso fé cega e pé atrás” e que “viver não é preciso e nem sempre faz sentido”. Ainda que provavelmente não soubessem que esse seria o último trabalho do trio Gessinger, Licks e Maltz, a banda inconscientemente encerrou a formação com um grande disco e que acabava relendo toda sua obra até então.

Em tempo: assim como escrevi sobre o disco Longe Demais das Capitais quando a banda ainda não contava com a presença de Augusto Licks como um prefácio dessa série, vou aproveitar um comentário que escrevi no blog do Humberto Gessinger, sobre o disco subsequente à saída de Augusto da banda, Simples de Coração para adicionar um posfácio à série.