Assim
como me ocorreu com o disco Blue de Joni Mitchell, quando conheci esse
disco de Bob Dylan não tinha noção
alguma da grande importância que o mesmo teve em sua carreira. Só vim a
descobrir a relevância do álbum para o artista ao ler seu livro intitulado
"Crônicas – Volume Um", no
qual ele dedica um dos apenas cinco capítulos totalmente a esse álbum. Oh
Mercy representou uma fase de recomeço para Dylan. No livro ele narra todo
o processo de feitura desse trabalho, desde a composição até o último take da gravação. Boa parte do texto
cita o produtor Danny Lanois, com
quem Dylan teve uma intensa convivência e divergências criativas durante o
processo de gravação do álbum.
“Political World” foi a primeira música composta
dessa leva e coube a ela também a função de abrir o disco. Com sonoridade
sombria e uma voz rascante de Dylan, os versos inicias já definem a música: “We live in a political world, Love don't
have any place” (Vivemos em mundo político, amor não tem lugar). A letra
foi escrita toda de uma vez e tinha pelo menos o dobro dos versos antes do
compositor descartar parte deles.
“Where Teardrops Fall” soa muito próxima do Dylan dos anos 70, especialmente pelo lap-steel tocado
por Lanois e a o acordeom de Rockin’ Doopsie.
Segundo
Dylan, o produtor Danny Lanois considerava “Everthing
Is Broken” uma canção descartável. Dylan obviamente discordava dele. E o
tempo provou que o compositor estava certo.
“Ring Them Bells” é uma das faixas mais “enxutas" do
disco, com acompanhamento apenas de piano, teclados e guitarra; e tem uma letra
de tom épico e religioso: Ring them
bells, for the time that flies/For the child that cries/When innocence dies (Toque os sinos para o tempo
que voa/Para a criança que chora/Quando a inocência morre).
“Man In The Long Black Coat” e “Shooting Star” foram escritas praticamente ao mesmo tempo. Sobre a
soturna “Man In The Long Black Coat”, Dylan
escreveu que ela “tenta falar de alguém
cujo próprio corpo não lhe pertence. Alguém que amou a vida, mas não pode
viver, e cuja alma se amargura porque outros são capazes de viver”. Incerto
de que conseguiu escrever músicas históricas para o disco como desejava o
produtor Lanois, Dylan acredita que tenha chegado perto em pelo menos duas, e
essa seria uma delas. Ele pensou nela como a sua “I Walk The Line”, música de Jonnhy
Cash, que na visão de Dylan: "promove um ataque a nossos pontos
mais vulneráveis, as palavras afiadas de um mestre".
“Most Of The Time” tem uma letra romântica como provavelmente
apenas Dylan escreveria, na qual os primeiros versos sequer revelam que este é
o tema da canção na qual ele apresenta um personagem forte e confiante que se
curva diante uma paixão e, consegue compor versos diferentes para um
assunto totalmente trivial: “Most of the
time/I'm clear focused all around/Most of the time/I can keep both feet on the
ground/I can follow the path, I can read the signs/Stay right with it, when the
road unwinds/I can handle whatever I stumble upon/I don't even notice she's
gone/Most of the time” (Na maioria das vezes/Eu sou tranquilo e focado com o
que acontece ao meu redor/Na maioria das vezes/Eu posso manter os dois pés no
chão/Eu posso seguir o caminho/Eu posso ler os sinais/Permanecer assim, quando
a estrada se desenrola/Posso lidar com qualquer coisa que eu esbarre/Nem sequer
noto que ela se foi/Na maioria das vezes).
A levada arrastada de “What good Am I?” soa como um blues improvisado. A letra também foi
composta toda de uma vez, como Dylan revelou.
“Disease of Conceit” que ele assume ter um toque
gospel, nasceu a partir da notícia da proibição de pregar ao pastor Jimmy Swaggart que também foi
destituído da liderança da Assembleia de
Deus devido à sua ligação com uma prostituta. Dylan que discordava da
punição escreve no livro: “A Bíblia está
cheia dessas coisas. Um monte daqueles antigos reis e líderes teve várias
esposas e concubinas, e o profeta Oséias até foi casado com uma prostituta e
isso não o impediu de ser um homem santo. Mas aqueles eram outros tempos, e
para Swaggart foi o fim da linha”. Para Dylan que gravou o piano nessa
faixa, disse que Arthur Rubinstein
teria sido o instrumentista perfeito para tocá-la.
“What Was It You Wanted?” foi outra que ele diz ter
composto rapidamente, letra e melodia ao mesmo tempo. Depois de uma pausa, o
compositor voltava à ativa com o ímpeto dos primeiros trabalhos. Os timbres de
guitarra com bastante efeito de tremolo e
reverb que aparecem em várias faixas
do disco reaparecem aqui e Dylan adiciona solos marcantes de harmônica.
Para a
gravação de “Shooting Star”, Dylan
confessa que gostaria de ter um ou dois clarinetes na gravação, mas fizeram com
o que estava disponível na ocasião: Brian na guitarra, Willie, na bateria, Tony
no baixo e Lanois no omnichord (um
instrumento de plástico que soa como uma cítara) e, ele na guitarra e
harmônica. A canção que segundo Dylan foi uma daqueles que surgiram completas,
lhe dá a sensação de que ele mais “a recebeu” do que compôs. Nas palavras do
compositor, era como se ele estivesse viajando pela trilha do jardim do sol e
simplesmente a encontrasse ali. “Ela era
iluminada. Eu tinha visto uma estrela cadente do quinta de nossa casa, ou
talvez fosse um meteorito”.
Como
afirmou Dylan no livro "Crônicas": “... o disco não me colocou de volta ao mapa do mundo do rádio... ele
obteve algumas resenhas boas, mas resenhas boas não vendem discos. Todo mundo que lança um disco consegue pelo
menos uma resenha boa, só que há sempre uma nova sagra de discos e um novo
conjunto de resenhas”. Ainda assim o disco se tornou um trabalho
extremamente importante na obra de Dylan, a ponto de ser o único a intitular um
dos capítulos do seu livro de memórias. Concluindo com palavras do próprio: “O negócio musical é estranho. Você o
amaldiçoa, mas o ama”.
Bob Dylan – voz, violões, guitarra,
piano, harmônica, órgão
Daniel
Lanois – dobro, lap steel, guitarra, omnichord
Rockin'
Dopsie – acordeom em "Where Teardrops Fall"
Willie
Green – bateria em "Political World", "Everything Is
Broken", "Most of the Time", "Disease of Conceit",
"What Was It You Wanted", "Shooting Star"
Tony Hall –
baixo em "Political World", "Everything Is Broken",
"Most of the Time", "Disease of Conceit", "Shooting
Star"
Malcolm
Burn – meia-lua, teclados, baixo em "Everything Is Broken",
"Ring Them Bells", "Man in the Long Black Coat", "Most
of the Time", "What Good Am I?", "What Was It You
Wanted"
John Hart –
saxofone em "Where Teardrops Fall"
Daryl
Johnson – percussão em "Everything Is Broken"
Larry
Jolivet – baixo em "Where Teardrops Fall"
Cyril Neville –
percussão em "Political World", "Most of the Time",
"What Was It You Wanted"
Alton
Rubin, Jr. – “Tábua de lavar” em
"Where Teardrops Fall"
Mason Ruffner – guitar
on "Political World", "Disease of Conceit", "What Was
It You Wanted"
Brian
Stoltz – guitarra em "Political World", "Everything Is
Broken", "Disease of Conceit", "Shooting Star"
Paul
Synegal – guitarra em "Where Teardrops Fall"
Obs: Todas as citações de Bob Dylan foram
retiradas do livro "Crônicas - Volume Um", editora Planeta, 2005.